“Progresso Nos ODS Ainda Não é Satisfatório”, Alerta Pesquisador da Universidade Das Nações Unidas • Diário Económico

Meio século após a independência, o País continua a enfrentar sérios desafios no combate à pobreza e na promoção de um desenvolvimento sustentável. Embora se tenham registado avanços pontuais em áreas como a equidade de género e a responsabilidade ambiental, persistem retrocessos em domínios essenciais, sobretudo na esfera socioeconómica.

Em entrevista ao DE, Sam Jones, investigador sénior do Instituto das Nações Unidas (UNU-WIDER), reflecte, em nome pessoal, sobre o progresso do País no cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Com base nos dados mais recentes, analisa os pontos fortes e os recuos do desenvolvimento nacional, apontando para a pobreza como o principal entrave ao bem-estar colectivo e ao crescimento inclusivo.

Este ano assinalaram-se 50 anos de independência do País. O objectivo aqui é percebermos onde estamos, em termos dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), e para onde estamos a caminhar. Quais são os desafios que Moçambique enfrenta? Com base nos dados mais recentes, quais são os principais avanços e retrocessos do País no cumprimento dos ODS?

a d v e r t i s e m e n t

Os ODS abrangem muitas áreas. Se olharmos para o “dashboard” (ferramenta de análise de dados que apresenta visualmente informações relevantes sobre um determinado processo) dos indicadores mais recentes, verificamos que há alguns progressos e aspectos positivos. Por exemplo, na área da produção e consumo responsáveis, Moçambique está numa posição forte. E, de certa forma, isso reflecte, infelizmente, o nível de industrialização que temos. A nossa produção não é moderna e, por isso, não gera tanta poluição como noutros países. Mas, de qualquer modo, Moçambique não é um país que polui muito. É bastante responsável no consumo e na produção, o que é importante, especialmente quando falamos de responsabilidade climática e afins.

Na área da equidade de género, também se registam alguns avanços. Obviamente, não é tudo perfeito, mas temos, por exemplo, mais mulheres no Parlamento e em cargos de liderança, o que é muito importante. Há também progressos na equidade de género nas escolas. Comparado com muitos outros países, há aspectos positivos.

O grande desafio, infelizmente, é na área socioeconómica e da pobreza. Como todos sabemos, não estamos a ver avanços significativos neste indicador. Pelo contrário, devido a vários factores, temos observado algum recuo. Isto significa que a pobreza tem vindo a aumentar em vez de diminuir. E isso traz uma série de outros desafios para o País. A pobreza é, talvez, o indicador mais importante do bem-estar, mas, infelizmente, não há progresso suficiente que nos permita estar satisfeitos.

Como avalia a capacidade do Estado para produzir e utilizar dados fiáveis que permitam monitorizar o progresso rumo aos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável?

Eu diria que, comparando Moçambique com países de desenvolvimento semelhante, estamos a fazer um trabalho razoável na produção de dados.

Mais de 90% dos indicadores dos ODS têm dados disponíveis com alguma regularidade, o que permite monitorizar o progresso de forma consistente. No entanto, há lacunas importantes, especialmente na monitorização do sector informal e do emprego, que são cruciais porque a maior parte das pessoas trabalha no sector informal. Falta informação detalhada sobre que tipo de trabalho fazem, qual o nível de remuneração e a qualidade dessas ocupações. Sem estes dados, torna-se difícil avaliar o impacto real das políticas públicas no bem-estar da população.

Sam Jones defende priorização das necessidades para resultados mais tangiveis

Acredito também que devemos apostar em métodos que acompanhem os mesmos grupos ou beneficiários ao longo do tempo, para medir efectivamente as mudanças provocadas pelas políticas e ajustar as intervenções conforme necessário.

Ainda sobre a questão da produção de dados fiáveis para identificar o progresso dos ODS no País, considera que a nova iniciativa do Governo de digitalizar o acesso à informação é bem-vinda?

Sim, considero essa iniciativa muito positiva. A digitalização melhora a qualidade dos dados porque permite implementar controlos automáticos que evitam erros, como registar pessoas com idades que não existem. Além disso, permite verificar se os recenseadores estão efectivamente no terreno, o que reduz a possibilidade de fraudes. Contudo, não posso deixar de apontar que há desafios: é preciso garantir o acesso contínuo à energia, formar bem os agentes que recolhem os dados e ter em conta que este processo é custoso e gradual. Não é uma solução imediata, mas penso que é um caminho muito promissor para aumentar a fiabilidade dos dados no médio prazo.

Na sua perspectiva, como pode o País financiar de forma sustentável os investimentos necessários para cumprir os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030? Ou seja, considerando os actuais níveis de dívida e a dependência de ajuda externa.

O principal desafio é a limitação dos recursos financeiros. Quando olhamos para o Orçamento do Governo e o dividimos pela população, temos cerca de 9600 meticais (120 dólares) por pessoa por ano, um valor muito baixo para cobrir todas as necessidades do País. Depois de descontar salários e serviço da dívida, restam apenas cerca de 2000 meticais (25 dólares) por pessoa para investir em infra-estruturas e serviços essenciais, o que é claramente insuficiente.

A situação agrava-se com a tendência de redução da ajuda externa, que tem vindo a ser canalizada para outras prioridades internacionais, como a segurança interna nos países doadores. Por isso, acredito que precisamos de diversificar as fontes de financiamento. A longo prazo, o crescimento do sector privado é fundamental, mas isso leva muito tempo.

A curto prazo, mecanismos de financiamento climático são cruciais, dado que Moçambique é um dos países mais vulneráveis às catástrofes naturais, embora tenha contribuído pouco para as causas dessas alterações. Ao mesmo tempo, é importante valorizar e exigir maior consistência na ajuda externa tradicional, para que o Governo possa planear a longo prazo e evitar a fragmentação dos projectos.

E quanto à exploração de recursos minerais, como o gás? Pode ou deve essa exploração assumir um papel central no financiamento do desenvolvimento sustentável?

Não podemos ignorar os recursos que temos, pois são uma grande oportunidade. Mas a forma como gerimos essa riqueza é essencial. Os benefícios têm de reverter para a população através de uma tributação justa e transparente. É um equilíbrio delicado, pois os investidores esperam riscos e lucros, mas a transparência é fundamental para que todos percebam os termos dos contratos, mesmo que alguns detalhes sejam confidenciais por razões comerciais.

O pesquisador entende que a exploração de recursos deve beneficiar todos cidadãos nacionais

O Estado deve reforçar a sua capacidade técnica para negociar e fiscalizar esses projectos, o que evita perdas e práticas pouco claras. Mesmo equipas técnicas pequenas, de 10 a 15 pessoas, podem fazer uma grande diferença. Moçambique deve seguir o exemplo de outros países que dedicam equipas maiores a esta supervisão, garantindo assim que os lucros sejam efectivamente aplicados no desenvolvimento do País.

As reformas macroeconómicas ou institucionais são essenciais para acelerar o progresso rumo aos ODS na próxima década?

Sim, são essenciais. O mundo está em constante mudança e não há receitas fixas. Por exemplo, ninguém sabe como estarão os preços do gás daqui a 10 anos, especialmente com as políticas para combater as alterações climáticas e os impostos sobre o carbono. Por isso, o Governo deve definir prioridades claras, porque não é possível focar-se em tudo ao mesmo tempo. Acredito que devemos apostar no crescimento económico baseado nas exportações que criem emprego para a maioria da população, e na redução das desigualdades regionais, já que Maputo é como uma ilha económica, muitas vezes desconectada do resto do País.

Para alcançar isso, precisamos de energia acessível, mas com custos sustentáveis, e energia verde para evitar limitações futuras. É também fundamental melhorar infra-estruturas estratégicas, facilitar o acesso das pequenas explorações agrícolas a cadeias de valor internacionais e garantir a procura dessas produções para motivar os agricultores. Por fim, não podemos esquecer a importância de sistemas de protecção social que assegurem condições mínimas de vida e incentivem o empreendedorismo local, sobretudo nas zonas rurais.

Como pode o Governo melhorar a coordenação entre Ministérios e níveis de governação na implementação de políticas públicas ligadas aos ODS?

O Governo tem feito progressos, especialmente com a Estratégia Nacional de Desenvolvimento (ENDE), que tem reforçado a coerência entre os planos dos diferentes Ministérios. Contudo, o maior desafio continua a ser o financiamento. Há um problema sério quando os Ministérios recebem fundos directamente de doadores, fora do Orçamento do Estado, porque isso gera fragmentação e dificulta a coordenação.

O principal desafio é a limitação dos recursos financeiros. Quando olhamos para o orçamento do Governo e o dividimos pela população, temos cerca de 9600 meticais (120 dólares) por pessoa por ano, um valor muito baixo para cobrir todas as necessidades do País

Acredito que a solução passa por retomar mecanismos de apoio orçamental, em que os doadores financiem o Orçamento global do Governo, em vez de projectos isolados para Ministérios específicos. Projectos dirigidos por doadores só são justificáveis em situações de emergência, não para os planos estratégicos de longo prazo. Também defendo a criação de estruturas orçamentais específicas, como um fundo de produção social com financiamento garantido por vários doadores durante dois a cinco anos, mas gerido directamente pelo Governo.

Actualmente, o financiamento para produção social é irregular, o que prejudica a planificação e a execução. Precisamos de honestidade para reconhecer esta situação e de priorizar estratégias sustentáveis, com passos claros e realistas. O financiamento, a priorização, a coordenação e a transparência são cruciais para cumprir os ODS até 2030.

Há muito que se exploram os recursos naturais, e agora, com o gás, há um novo impulso. Mas, como referiu no início, a redução da pobreza continua tímida. Como se explica esta desconexão? Moçambique cresce (projecta-se que crescerá x% em três ou quatro anos) e, mesmo assim, depois desses anos, a pobreza mantém-se elevada. O que está a acontecer? O que deve ser feito para se criarem melhores condições e combater a pobreza?

É importante compreender alguns pontos essenciais. O ritmo de crescimento económico de Moçambique abrandou bastante na última década. Entre o fim da guerra civil, em 1992, até cerca de 2010-2012, houve um crescimento consistente e relativamente rápido que contribuiu para a redução da pobreza, ainda que a um ritmo inferior ao desejado. Naquela altura, o crescimento envolvia vários sectores, como agricultura e serviços, sendo relativamente equilibrado. Depois da descoberta de carvão e, mais recentemente, de gás natural, a partir de 2014-2015, o crescimento tornou-se insuficiente. E é crucial destacar que o crescimento per capita tem sido praticamente nulo, uma realidade que devemos encarar com franqueza. Sem crescimento per capita, não podemos esperar uma redução efectiva da pobreza.

Além disso, o crescimento económico passou a depender cada vez mais da extracção de recursos naturais, especialmente o gás. Em 2022 ou 2023, cerca de 50% do crescimento veio deste sector. No entanto, estes projectos têm um impacto limitado na criação de emprego e injectam pouco dinheiro directamente na economia local. Muitas das receitas de exportação de gás acabam por ficar fora do País ou retornam aos investidores estrangeiros.

Este padrão, comum em muitos países ricos em recursos, não gera melhorias rápidas no bem-estar da população. Os impactos positivos tendem a surgir mais tarde, através da tributação justa e da criação de cadeias de valor com conteúdo local, mas estas são metas difíceis num País com uma economia pouco diversificada. Empresas globais dominam e a interligação com Pequenas e Médias Empresas (PME) nacionais, que ainda estão em desenvolvimento, é limitada. É um processo lento que exige tempo e investimento.

Mais de 90% dos indicadores dos ODS têm dados disponíveis com alguma regularidade, o que permite monitorizar o progresso de forma consistente. No entanto, há lacunas importantes, especialmente na monitorização do sector informal e do emprego, que são cruciais porque a maior parte das pessoas trabalha no sector informal

Também devemos considerar os choques económicos e as catástrofes naturais que o País tem enfrentado, o que dificulta ainda mais o progresso. Investidores, nacionais ou estrangeiros, precisam de confiança e previsibilidade. Sem estabilidade política, económica e social, ninguém investe, e sem investimento, não há crescimento. Por exemplo, as manifestações e distúrbios do ano passado, com pilhagens a lojas e fábricas, afectaram a imagem do País. A reputação demora anos a construir e pode ser destruída em segundos, prejudicando sectores como o turismo e o investimento interno.

Para acelerar o progresso, é absolutamente essencial criar um ambiente estável, com segurança política, económica e social, que incentive o investimento e o crescimento sustentável.

Qual é, hoje, o papel que a ajuda externa e as instituições multilaterais devem desempenhar em Moçambique, sobretudo tendo em conta os 50 anos de independência?

Na minha opinião pessoal, é essencial entendermos o contexto histórico de Moçambique, país que nasceu há 50 anos e teve de enfrentar os desafios dos primeiros 25 anos após a independência. Saímos de um sistema colonial extremamente desigual. O colonialismo português não deixou infra-estruturas nem capital humano significativo. Portugal, que na altura era também um país pobre, investiu muito pouco nas suas colónias. Por exemplo, um dos primeiros moçambicanos a obter formação universitária em Economia foi o Sérgio Vieira, licenciado em 1967 fora do País, o que mostra o ponto de partida difícil que tivemos.

Estas dificuldades estruturais profundas não se resolvem em poucos anos. Depois veio a guerra civil, agravada por interferências externas, e hoje enfrentamos ainda desastres naturais e crises climáticas que aumentam a pressão sobre o País. Por isso, mesmo apenas para manter a estabilidade, Moçambique enfrenta enormes desafios.

Temos de ser realistas: a responsabilidade pelo desenvolvimento é nossa, dos moçambicanos, mas não podemos fingir que faremos tudo sozinhos. Há obrigações morais, por causa da história, e obrigações globais, especialmente em termos de justiça climática e solidariedade internacional.

É fundamental que o País lidere o seu próprio desenvolvimento, mas com apoio externo consistente, previsível e transparente. Como já referi, com um orçamento médio de apenas 9600 meticais por habitante por ano (120 dólares), não conseguimos avançar muito. Precisamos de aumentar significativamente os recursos e usá-los com visão estratégica, responsabilidade e transparência. Se o fizermos, com realismo e estratégia, poderemos alcançar progressos reais.

Texto: Nário Sixpene

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