África e o Desafio de Financiar o Seu Próprio Futuro •
advertisemen tCom a redução da ajuda externa, os países africanos precisam de reforçar a mobilização de receitas domésticas, combater fluxos ilícitos e reformar os seus sistemas fiscais. Alguns países estão no bom caminho, outros ainda procuram o rumo ideal. O ciclo de dependência de ajuda externa em África está a esgotar-se. O alerta foi lançado, em Junho, pela directora-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Ngozi Okonjo-Iweala, durante o Fórum Ibrahim 2025, em Marrocos. Aquela responsável sublinhou que o continente precisa urgentemente de apostar na mobilização interna de receitas, num contexto em que as economias enfrentam desafios estruturais como o aumento das dívidas públicas e crescentes exigências sociais. Para isso, será necessário elevar a eficiência fiscal, taxar melhor a riqueza e os recursos naturais, e, sobretudo, restaurar a confiança dos cidadãos na função redistributiva do Estado. Quando os impostos se tornam imperativos A pressão para aumentar as receitas fiscais em África é uma consequência directa de um contexto internacional em transformação. A ajuda externa está em queda, afectada pelo aumento das pressões internas nos países doadores, pelo custo das crises globais, como a guerra na Ucrânia e as alterações climáticas, e por um crescente sentimento de “fadiga dos doadores”. Como reconhece a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), “as necessidades orçamentais domésticas em países doadores, agravadas pelas crises energéticas e de refugiados, estão a comprometer a capacidade e a vontade política de manter os níveis anteriores de ajuda”. Apesar de, em 2022, o total de ajuda pública ao desenvolvimento ter atingido 211 mil milhões de dólares (um recorde histórico), apenas um quinto deste montante foi canalizado para África e grande parte sob a forma de empréstimos, não como donativos directos. Por outro lado, há uma tendência crescente para substituir a ajuda tradicional por produtos mistos (“blended finance”), instrumentos financeiros de risco partilhado, menos previsíveis e que condicionam mais os países africanos. Neste novo cenário, torna-se inevitável reforçar os mecanismos internos de arrecadação. “Temos de levar a sério a mobilização dos nossos recursos internos. O aumento dos impostos faz parte do contrato social”, alertou a directora da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala. Este imperativo fiscal, porém, só ganhará legitimidade se for acompanhado de melhorias reais nos serviços públicos e na transparência. Em paralelo, é urgente travar a ‘hemorragia’ causada pelos fluxos financeiros ilícitos, que drenam cerca de 89 mil milhões de dólares por ano, segundo estimativas da ONU. A recuperação destas verbas, muitas vezes escondidas em jurisdições opacas, é vital para reforçar a sustentabilidade fiscal do continente. Estruturas fiscais frágeis e dependentes Em muitos países africanos, a estrutura fiscal ainda é limitada, frágil e excessivamente dependente dos direitos aduaneiros. Em, pelo menos, 15 países, estes impostos sobre bens importados representam mais de 40% das receitas fiscais. Nalguns casos, como São Tomé e Príncipe, chegam aos 100%. Além do desperdício fiscal, a má governação impõe um custo ambiental e social significativo, frequentemente ignorado pelas empresas Esta realidade revela como é escassa a base tributária, mas mostra também a vulnerabilidade extrema a choques externos, como crises nas cadeias de abastecimento ou flutuações nos preços globais. Para garantir estabilidade financeira, os países africanos precisam de diversificar as suas fontes de receita, reduzindo a dependência de impostos sobre as importações. Recursos naturais escapam ao fisco Apesar da imensa riqueza em petróleo, gás, ouro, cobre, lítio e outros minerais estratégicos, a África Subsaariana arrecada apenas cerca de 40% do potencial fiscal associado a estes recursos, segundo o Banco Mundial. Em vez de se traduzirem em receitas robustas para o desenvolvimento, os sectores extractivos continuam marcados por regimes fiscais opacos, isenções generosas, fraca fiscalização contratual e uma captura de rendas públicas por interesses privados, muitas vezes com a cumplicidade de elites nacionais. A baixa tributação, agravada pela volatilidade dos preços internacionais das matérias-primas, compromete a previsibilidade orçamental e expõe os países à chamada “maldição dos recursos” — quando a abundância mineral se transforma em instabilidade económica, desigualdade e corrupção. Além do desperdício fiscal, a má governação impõe um custo ambiental e social significativo, frequentemente ignorado pelas empresas exploradoras, com impactos duradouros em ecossistemas, comunidades locais e saúde pública. As situações variam. A República Democrática do Congo (RDC) enfrenta perdas fiscais significativas na exportação de cobalto, muitas vezes subfacturado; Angola ainda depende fortemente das receitas do petróleo, com contratos pouco transparentes; o Níger extrai urânio há décadas sem retorno proporcional para a população; e Moçambique, com enormes reservas de gás natural, debate-se entre as promessas de receitas futuras e a necessidade urgente de garantir contratos fiscais justos. O Banco Mundial propõe uma abordagem integrada e moderna: reformar os regimes fiscais extractivos, melhorar a transparência e a capacidade regulatória e capturar os “dividendos verdes” da transição energética global. À medida que o mundo se descarboniza, cresce exponencialmente a procura por minerais africanos críticos para tecnologias limpas como baterias, turbinas eólicas e painéis solares. Se bem tributados e investidos, estes ganhos podem ser canalizados para educação, saúde, infra-estrutura sustentável e diversificação económica, ajudando os países a escapar da armadilha da dependência extractiva. A instabilidade política mina a capacidade de arrecadação em vários países Experiências por replicar… e por rejeitar O continente africano oferece lições valiosas, tanto de sucesso como de fracasso, na construção de sistemas fiscais eficazes. A África do Sul é, neste campo, um dos exemplos mais encorajadores. Em 2024, arrecadou mais de 100 mil milhões de dólares, com destaque para o imposto sobre o rendimento de pessoas singulares (IRPS), que continua a ser a principal fonte de receitas do país. Este resultado deve-se, em grande medida, à implementação de reformas estruturais na administração tributária, incluindo um sistema inovador de cobrança em duas parcelas, que aumentou a eficiência e reduziu a carga pontual sobre os contribuintes. A combinação entre reformas administrativas, estímulos económicos e fortalecimento da confiança pública teve um efeito multiplicador sobre a arrecadação e o consumo. O caso sul-africano demonstra que capacidade institucional, transparência e previsibilidade são elementos centrais para melhorar o desempenho fiscal, e que um sistema bem gerido pode, simultaneamente, arrecadar e gerar mais crescimento. No extremo oposto, está o exemplo da Guiné-Bissau, que permanece entre os países africanos com menores níveis de arrecadação fiscal, segundo dados do Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) e da OCDE. Em 2022, as receitas fiscais representavam apenas cerca de 9% do PIB, muito abaixo do limiar de 15% recomendado para financiar os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A Guiné-Bissau depende fortemente de direitos aduaneiros e de ajuda externa, carece de uma administração tributária eficaz e enfrenta desafios persistentes de informalidade, corrupção e baixa confiança nas instituições públicas. Estes dois extremos ilustram que, embora o desafio seja comum a muitos países africanos, as respostas institucionais fazem toda a diferença. A replicação de boas práticas, como a simplificação de processos, a digitalização, a educação fiscal e o combate à evasão, não só é desejável, como urgente para evitar que mais países fiquem presos à armadilha da fragilidade fiscal. Quais devem ser as prioridades de reforma? Construir uma estrutura fiscal resiliente exige reformas ambiciosas, mas coordenadas. O reforço da arrecadação deve ser acompanhado de medidas que promovam justiça fiscal e fortaleçam o contrato social. Eis alguns caminhos que se impõem: Alargar a base tributária com inclusão progressiva de rendimentos e riqueza, combatendo a evasão e a elisão fiscais; Eliminar isenções fiscais ineficazes, sobretudo no sector extractivo e em regimes especiais, que reduzem a base potencial; Investir em capacidades administrativas e digitais das autoridades tributárias, garantindo maior eficiência, cobertura e conformidade; Combater os fluxos financeiros ilícitos e recuperar activos desviados, em coordenação com países desenvolvidos e instituições multilaterais; Melhorar a transparência orçamental e a qualidade da despesa pública, de modo a aumentar a confiança dos contribuintes e legitimar o esforço fiscal; Criar um sistema fiscal mais equitativo e sustentável, promovendo redistribuição e desenvolvimento. O que esperar da integração fiscal? A Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA), ao prever a eliminação de 90% das tarifas aduaneiras nos próximos 5 a 10 anos, coloca uma pressão adicional sobre os sistemas fiscais nacionais, especialmente os altamente dependentes dos direitos de importação. No entanto, a AfCFTA é também uma janela estratégica com potencial para catapultar as trocas económicas para níveis inéditos e, assim, ajudar a repensar o modelo fiscal africano. Ao promover a integração regional, a harmonização das regras fiscais e a criação de cadeias de valor intra-africanas, o acordo pode ajudar os países a: Reduzir a informalidade através de maior escala de mercado; Aumentar a competitividade fiscal sem recorrer a isenções destrutivas; Atrair investimentos sustentáveis que reforcem a base tributária; Estimular a cooperação entre administrações fiscais; Construir uma governança fiscal africana mais integrada e coerente. Se bem gerida, a AfCFTA pode ser a plataforma de que África precisa para a estrutura fiscal frágil e fragmentada passar a ser sólida e desenvolvida. Receita que (também) alivia a dívida Com os níveis de endividamento a atingirem máximos históricos em várias economias africanas, a capacidade de arrecadar receitas internas tornou-se a chave para restaurar a sustentabilidade fiscal. Segundo o FMI, a consolidação orçamental só será eficaz se for acompanhada por um esforço robusto para alargar a base tributária, cortar isenções ineficazes e melhorar a qualidade da despesa. A fragilidade orçamental, quando sustentada por financiamento externo e dívida em moeda estrangeira, expõe os países africanos a choques cambiais e limita a margem para investimento social. Em Moçambique, por exemplo, as reformas em curso na administração tributária, especialmente ao implementar a digitalização de serviços, visam aumentar a eficiência da cobrança e reduzir a dependência de dívida externa. Texto: Celso Chambisso • Fotografia: DR
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